COVA DO VAPOR

 

COVA DO VAPOR

por Álvaro Domingues

Localizadas no extremo da margem Sul do Tejo, mesmo antes do rio penetrar no grande mar oceano, Trafaria, Torrão, Cova do Vapor, parecem terras indefinidas entre a geografia da realidade e da ficção. Depois de impressionados pela massa cilíndrica dos silos de cereais, altíssimos, excessivos, logo nos perdemos na infinidade das pequenas coisas, barcos e automóveis estacionados lado a lado, gente que deambula, ora simpática, ora furtiva, barulhentos mecânicos de automóveis adaptando as máquinas em prodígios de sons e luzes, crianças ciganas, emigrantes africanos, pescadores, ruínas de fábricas, amontoados de casas apinhadas, precárias ou muito sólidas dentro de muros, materiais diversos, cores, lixo, ruas estreitas de terra e areia, ruas pavimentadas com tudo, papelões, pedaços de tijolos partidos, lajetas de betão. Não se saberia se alguém está a montar ou a desmontar tudo isto.
Convivem lado a lado o cuidado ínfimo com as coisas, as tintas frescas, as paredes imaculadas, os vasos de flores, com a ruína, os barracos e as casas devassadas, os carros velhos e a maior diversidade de sucata.
O mar rói as margens e as praias nesta língua de areia que os humanos, o vento, as ondas e as correntes foram mudando desde que há memória do mundo. O avanço das águas e a erosão constituem hoje uma ameaça constante.  

Sobram histórias trágicas destas terras de flutuante condição. O lazareto que lá foi instalado em 1565 é já um sinal da marginalidade e estigmatização.
Nos idos de 1775, um governante déspota e sem escrúpulos que os historiadores se encarregaram de mitificar, o Marquês do Pombal, mandou incendiar a Trafaria, maltratando e prendendo quem escapava e obrigando os homens a irem para o exército. O Marquês sabia que na Trafaria se escondiam, soldados desertores, ladrões e jovens refratários do serviço militar.
Depois vieram as indústrias de conserva de peixe e até uma fábrica de dinamite. A terra prosperou também com a frequência balnear por parte de alguma burguesia lisboeta e até aconteceu de a rainha vir à Trafaria no início de séc. XX inaugurar a primeira colónia balnear em Portugal. Os palheiros dos pescadores passaram a conviver com outras casas de madeira dos veraneantes sazonais vindos dos bairros populares de Lisboa.
Haveria, escolas, banda, coreto, ginásio, sociedades recreativas, bombeiros,  fortes, quarteis e presídios militares. O trabalho na indústria e na apanha da amêijoa misturava-se com os “banhistas”.

A moda de “ir a banhos à Trafaria” inaugurou a carreira do barco a vapor de onde vieram os topónimos de Cova do Vapor e Lisboa Praia. A Cova do Vapor foi-se enchendo de casas de madeira que o mar frequentemente destruía, sobretudo a partir dos anos de 1930’. Por isso havia que reconstrui-las e mudá-las de lugar. Algumas eram transportadas por juntas de bois que as puxavam.

De 1946 vem este excerto de Etienne de Gröer, polaco-russo, reputado urbanista e professor do Instituto de Urbanismo de Paris, contratado pelo governo do regime salazarista para fazer planos em Portugal:

(…) Mais para o Norte, além da Mata Nacional, encontra-se a “Cova do Vapôr”, um pequeno porto formado por uma enseada entre as dunas, perto da embocadura do Tejo.

Sobre a língua de areia que se formou entre o rio e o mar, ergueram-se minúsculas barracas de madeira, sobre estacaria, construídas nas parcelas das dunas que alugou aos seus proprietários a direcção do Porto de Lisboa. São casas de fim-de-semana ou de “camping”.

Lamento ter de dizer que tudo isto foi construído na maior desordem possível: as casinholas estão demasiado perto umas das outras e apresentam, no seu conjunto, o aspecto de uma aldeia de pretos. Não têm nem água, nem esgotos.

As águas usadas e tudo o resto deita-se na areia, que se torna progressivamente insalubre e de mau cheiro.

Antes desta pérola sobre a “aldeia de pretos”, o mesmo já tinha escrito que

“A praia da Trafaria não é conveniente para os banhos de mar, pois que as correntes do Tejo trazem para cá e acumulam em frente dela todos os despejos dos esgotos de Lisboa. (…) Construiu-se tudo em grande desordem.

Há um número exagerado de ruas, muitas das quais são demasiado estreitas, e todas elas (ou quase) não tem arranjo nenhum, nem são conservadas de qualquer maneira. Reina em muitos sítios um cheiro desagradável por falta de instalações sanitárias nas casas 1.

Há horríveis barracas, feitas com pranchas e com ferro-velho, e um grande número de casebres de todas as espécies que servem como habitação para uma grande parte da população, que por causa disso sofre de todos os danos físicos e morais. A tuberculose reina aí.”

Não vale a pena insistir. Em 2002, no Jornal Púiblico, José António Cerejo muda radicalmente o tom:

"Cuidada e delicada, feita de afectos que não marcam os bairros degradados das periferias, a Cova do Vapor está longe de ser um bairro de lata ou uma aldeia igual às outras. É uma povoação singular, é um lugar onde tudo é diferente, sem escola, centro de saúde ou vestígio de serviço público, um lugar contraditório, uma relíquia de excepção. São construções mais ou menos precárias, encavalitadas umas nas outras, expoentes de engenho e desenrascanço, às vezes sem se perceber onde é que começam umas e acabam as outras. São casas e casinhas, com apenas duas ruas de terra batida, onde estão as poucas lojas da terra, capazes de deixar passar carros; mas o labirinto dos caminhos serpenteia por todo a parte, com largura apenas para os assadores, para os canteiros da salsa e dos coentros, para um tanque de roupa ou um duche apertado. Às vezes ainda há espaço para umas couves, umas flores, umas árvores de fruto, armários, estendais, e inventivas garagens e anexos de casas." 2

Era difícil que houvesse acordo numa terra que nasceu num lugar onde existia uma fábrica de dinamite; onde o mar, o vento e a areia fazem e desfazem praias e dunas; onde a linguagem e os actos do poder oscilam entre a violência, o pitoresco e a condescendência. É quase um fado, uma maldição que só desaparece com magias e encantamentos que povoem novamente os lugares e o seu imaginário.

Com a expressão francesa Terrain Vague, Ignasi de Solà-Morales3 pretendeu capturar está espécie de luz negra que nos fascina e nos atrai para lugares que estão do lado de fora da racionalidade normativa corrente. A escolha do francês tinha uma intenção dupla: terrain, remete claramente  para  terreno edificado, para um lugar urbano, e vague, possui um duplo sentido de vazio de coisas, vazio de função e, sobretudo, vazio de sentido. Lugares incertos.


La imaginacion romântica que pervive en nuestra sensibilidade contemporânea se nutre de recuerdos y de expectativas. Extranjeros en nuestra própria pátria, extranjeros en nuestra ciudad, el habitante de la metrópoli siente los espácios no dominados por la arquitectura como reflejo de su misma inseguridad, de su vago deambular por espácios sin limites que, en su posición externa al sistema urbano de poder, de actividade, constituyen a la vez una expresion física de su temor e inseguridad, pero también una expectativa de lo outro, lo alternativo, lo utópico, lo porvenir, etc.


A ausência de uso, ou a sua indefinição,o estranhamento, a instabilidade ou baixa intensidade, e o próprio sentido ambivalente da precariedade, da ausência e da ruína – sinal de resistência, apesar de tudo, ou sinal de decrepitude progressiva – seriam ingredientes quase romântico para a construção de uma estética da liberdade, daquilo que pelo seu pouco préstimo está pronto para ser re-imaginado num campo infinito de possibilidades.
Estariamos longe da obsolescência acelerada e dos seus significados desencantados, apesar dos muitos sinais de abandono que na Cova do Vapor convivem com extremos de minúcia e dedicação nos afectos que as paredes expõem: desenhos com seixos e conchas, mosaicos coloridos, pinturas de barcos e arco-íris, nomes escritos e palavras que designam tempos felizes e mundos perfeitos.

A foto-grafia de Stefano Carnelli surpreende e dá a ver esta ambiência por múltiplos e dissonantes caminhos: sobre erva seca e terra pisada, flutuam cordas com roupa a secar; perto, uma casa simples e bastante degradada, não se sabe se usada ou abandonada; para lá de um renque de pinheiros, a escala desmesurada de um silo composto por um feixe de cilindros como tubos de um órgão gigantesco. As faixas coloridas que percorrem o silo em diagonal, ecoam o azul e branco do céu e das nuvens. Estamos pouco prevenidos para tamanhas dissonâncias.

Sobre este material instável, a fotografia, ao estabelecer um fio condutor entre significados e significantes fotográficos, constrói uma atmosfera própria que permitirá aceder a outras dobras mais escondidas; para uns, românticos, a alma desencantada das coisas, um lamento deslassado, distribuído por indícios, marcas, coisas ausentes ou fora do lugar. Para outros, é exactamente a energia da dissonância, reunindo no mesmo lugar presenças muito afastadas, aproximando-as, que é capaz de expandir os sentidos em direcção à invenção poética da realidade ou à sua expansão.

Por isso, o simples registo das coisas documentadas não é o que mais claramente se revela. O que se desprende são sobretudo sinais, marcadores, caminhos que conduzem a universos maiores e que aqui apenas se insinuam por presenças que por vezes são minúsculos resíduos ou simplificações. É isso que fica liberto para o jogo das emoções.

Depois há os rostos, as pequenas coisas dos humanos, as suas casas e os seus sonhos. Tudo parece ao mesmo tempo pobre e rico, simples e complexo, banal e extraordinário, descuidado ou meticulosamente preenchido para que nada escape à intensidade de quem aqui vive e como vive.

São lugares estranhos que parecem fora dos circuitos habituais; aparentemente esquecidos ou residuais, imprecisos, flutuantes ou vagabundos.
Poder-se-ia pensar que são coisas à margem (talvez marginais, também), inseguros por causa dos ataques do mar ou da sensação que ali se acolhem outras ameaças…, mas logo que nos deixamos conduzir pelos rostos das pessoas - esperançosos, alegres ou alheados, como nós -, pela minúcia dos espaços e das coisas domésticas, pela densidade de marcas pessoais, de memórias, de contínuo cuidado pela fragilidade de tudo, paredes, tectos, fios, electrodomésticos…, disso tudo só nos fica a sensação da falta de bens materiais preenchida por tudo aquilo que possa ocupar algum vazio por onde haja o risco de qualquer coisa se desmoronar e, num vórtice, tragar tudo.

Por isso há pedregulhos a defender as ruas de terra batida, tal como há vasos de plantas, bonecos, cores, quadros, recordações, objectos, azulejos…, toda uma saturação de coisas, acontecimentos, memórias, presenças que tenham o poder de afastar esse horror ao desaparecimento.


1 Etienne Gröer (1946), Plano de Urbanização do Concelho de Almada: análise e programa. Relatório., 1946 In Anais de Almada, 7-8 (2004-2005), pp. 151-236.

2 José António Cerejo (2002), Uma Relíquia Chamada Cova do Vapor, PÚBLICO, 28/04/2002.

3 Ignaci Solà-Morales (1995), “Terrain Vagues”, in Anyplace, Anyone Corporation, The MIT Press, N York, pp.118-123. Disponível em https://paisarquia.files.wordpress.com/2011/03/solc3a1-morales_i_terrain-vague.pdf.