VISÕES NOTURNAS I

 

VISÕES NOTURNAS I

POR JOÃO MIGUEL BARROS

 

Sim, há lugares em que a noite é mais noite, com as sombras a confundirem-se com os corpos e os objectos. Tudo o que por lá se move parece projectar uma realidade escondida.  Naquelas ruelas, por exemplo.  Naquelas ruelas interiores que os grandes blocos de prédios permitem e comprimem, há uma vida oculta, imperceptível. É preciso entrar pelo escuro para sentir esse pulsar. No reverso dessas ruelas as vias são largas, iluminadas, com uma luz calculada para projectar a exuberância das grandes casas comerciais e para deixar respirar os neóns e as aparências.  A cidade vive destes contrastes. Sem contemplações acolhe a liberdade dos poderosos e, ao mesmo tempo, a escravidão dos homens amarrados a um trabalho que os consome lentamente. Desfigurando-os. Até se tornarem invisíveis dos demais.

Yes, there are places where night is more night, with shadows confused with bodies and objects. All things moving around there appear to be projections of a hidden reality. In those lanes, for example. In those inner lanes that great blocks of buildings create and compress, there is a hidden, imperceptible life. It is necessary to enter through the dark to feel that pulse. Behind these lanes, the streets are wide, well-lit, with light calculated to project the exuberance of the large shops and give the neons and appearances room to breathe. The city lives on these contrasts. Without ceremony, it accommodates the freedom of the powerful and, at the same time, the slavery of the men tied to work that slowly consumes them. Disfiguring them. Until they become invisible to others.

 

Sobre o autor:

João Miguel Barros nasceu em 1958, em Lisboa  

É advogado de profissão, em Lisboa e Macau. Foi codiretor da revista de cultura e artes visuais SEMA (1979-1982). Recentemente começou a expor os seus trabalhos, tendo publicado em 2017 o livro de fotografia Between Gaze and Hallucination.  

Actualmente tem no Museu Berardo, Centro Cultural de Belém, uma exposição de grande fôlego denominada "Photo-Metragens", constituída por 14 pequenas histórias independentes, com imagens e textos ficcionados.  

Nos últimos anos tem vindo a estudar os principais artistas contemporâneos chineses e japoneses. É curador freelancer na área da fotografia contemporânea, tendo organizado duas exposições de fotografia de artistas chineses em Portugal e estando a trabalhar em vários outros projectos de curadoria para o próximo triénio.